Duas resenhas, dois livros recheados de vidas e vozes: Go e O Fio das Missangas
Olá, gente! Tudo bem? Espero que sim.
No post de hoje eu resolvi compartilhar mais resenhas que escrevi e postei no meu skoob. Não
modifiquei muita coisa em ambas.
São livros que li em novembro: Go de Nick Farewell e O Fio das Missangas de Mia Couto. O primeiro autor, brasileiro, paulista e sul coreano - sim, tudo isso - e o segundo, moçambicano. Ou seja, os dois escreveram seus livros em português, o que nos aproxima muito mais de suas narrativas, não acham? Já que não precisamos de uma tradução e, de certa forma, de uma adaptação para a nossa língua - nesse processo podemos perder algo único da língua original, por exemplo.
O trabalho do tradutor é praticamente de reescrita, como noto quando estudo e revejo literatura comparada, além de artigos e trabalhos sobre o assunto... Não entrarei em detalhes sobre isso, mas recomendo que pesquisem um pouco.
Voltando: já ouviram falar ou conhecem os dois livros? Se não, venham comigo. Espero que depois da leitura das resenhas das duas obras, vocês se sintam motivados a buscarem saber mais ou então lerem, finalmente. São obras de leitura rápida, embora densos quando pensamos sobre seus temas.
Go de Nick Farewell (leitura de 02 de novembro de 2020)
Frenético, alucinante: é a vida
O protagonista sente como se não pudesse conversar, já que ninguém poderia entendê-lo ou compreendê-lo. Ele sente muros intransponíveis quando tenta.
E quando finalmente parece ter encontrado um prumo, quando se apaixona por uma moça fascinante e corajosa, Ginger, conseguindo e alcançando assim um sentido, ele se auto sabota, porque parece não suportar sofrer ou sentir depois. Pensa como se então precisasse se antecipar a dor, que não sabia se viria ou não. Como se não merecesse ou não pudesse suportar a alegria, a felicidade ou o amor.
Como eu disse, é um livro que têm seus pontos altos e baixos, tanto quanto a vida do personagem, quanto a alguns detalhes que eu não colocaria na obra. Como o capítulo extra "O grande capítulo da solidão" (eu preferiria que tivesse deixado em aberto), mas até isso parece ter sido planejado pelo autor Nick Farewell, sul-coreano/brasileiro. "O grande" mostrará que o DJ teve sua recaída no fundo do poço novamente, como qualquer ser humano, portanto, precisou de um certo empurrão, de uma certa 'relembrança' do porquê escreve. E provavelmente esse final é um dos mais belos escritos e melhor do que qualquer livro de auto ajuda.
"(...) Só pensei em escrever o que sou. Traduzir em palavras o que sou. O que me fez e fiz durante o ano todo e a minha vida inteira. (...)"
Sou apenas um ser humano como você, tentando encontrar uma saída. Sou apenas um homem com uma incerteza do tamanho do universo tentando encontrar um motivo para continuar vivendo. E o meu direito, o meu único direito, será tentar. Isso, nunca, ninguém poderia tirar de mim. (...)"
"Agora só tenho mais uma coisa a dizer. O meu único conselho de vida. Duas letras que formam uma palavra. Você já sabe, quando tudo estiver ruim, lembre-se destas duas letras que formam uma palavra: GO. Escreve, desenhe, pinte, fotografe, dance, costure, atue, cante. Portanto, quando tudo estiver ruim, lembre-se destas duas letras que formam uma palavra. GO. Vá. Vá em frente. Apenas faça."
O Fio das Missangas de Mia Couto
"A missanga, todas a vêem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo." (Epígrafe)
Os vinte e oito contos presentes nessa coletânea serão amarrados por o mesmo fio: o autor, Mia Couto ou uma figura abstrata que une a todas as narrativas e personagens, estes, as missangas.
Os diferentes narradores e narradoras irão estar interligados/relacionados pela dureza, aspereza e as complexidades humanas. Todas as dores, sofrimentos e amores existentes na vida humana. Sentimentos, sensações e vivências universais, apresentadas e mostradas por relatos confessionais daquelas e daqueles que sentem a realidade da forma mais crua e cruel. E chega a parecer que o poeta é um personagem que paira pelas histórias, ouvindo as confissões desses abjetos, perdidos ou "desencontrados". Eles se confessam, se abrem, afinal desejam ser guardados, eternizados, porque se perderam durante seus percursos e caminhos.
"Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as
lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por
educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de
céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança." (Inundação)
Todos estão ligados pelo fio que é a vida. Mas as similaridades não acabam aí. Percebemos também o trabalho com o insólito, o que é estranho, fora das leis naturais e lógicas no nosso mundo, contudo é naturalizado dentro das histórias. E muitos contos trazem pessoas que voam, se tornam cães, que falam com peixes ou que remam até o céu em busca de água.
A naturalização do estranho, incompreensível, aqui lembra muito o Realismo Maravilhoso de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Isabel Allende etc. Inclusive pode remeter aos contos contemporâneos de Lygia Fagundes Telles, como "As Formigas", em que a estranheza é natural, embora não deixe de assustar os personagens em muitos momentos.
Ainda assim, enfatizemos, os relatos irão abranger temas e críticas reais e sociais, desde preconceito, machismo, racismo, violência contra a mulher e opressão. Principalmente nos contos, "O homem cadente" "A saia almarrotada", "Meia culpa, meia própria culpa", "Os olhos dos mortos" e "Novo Padre", para citar somente alguns. E em todos a memória, a falta de perspectiva e de esperança na estrutura social estarão muito presentes.
"– A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São
sempre tantas, as missangas." (O Fio e as missangas)
Se o autor moçambicano, Mia Couto é o poeta - ou dá voz a este -, o fio que passa pelas contas, as missangas, ele consegue com maestria unir uma linguagem poética e filosófica, criando/recriando neologismos e palavras dúbias, que exigem interpretações mais profundas - outra referência que podemos lembrar é o autor português Valter Hugo Mãe, que possui essa mesma característica.
Ao criar uma linguagem poética, a dureza das existências desses confessores se torna um fardo mais leve de ser lido e carregado pela leitora ou leitor. Obviamente, é objetivo proposital do escritor. E funciona, atestemos.
"Nunca quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu, nem dona, nem
senhora. Sempre fiquei entre o meio e a metade. Nunca passei de meios
caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu nome: Maria Metade." (Meia culpa, meia própria culpa).
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