Comentário: pensando a escrita como trabalho

Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde; indispensável muita observação. 

A escrita permite a expressão de ideias, de opiniões, de fatos sobre determinados assuntos, como também permite a expressão artística e literária, claro. Contudo, há muito tempo vem sendo mal compreendida e entendida como se pertencesse a poucos, a escolhidos e a pessoas talentosas, iluminadas, que nascem com o dom. Mas, podemos notar que escrever não é dom, é antes de tudo, esforço, planejamento e consequência de muito estudo. Tal como disse Graciliano Ramos em uma de suas entrevistas mais famosas, a palavra não deve ser feita para brilhar, deve ser feita para dizer. E enfatizando um pouco antes, o autor alagoano revela — aconselhando outros escritores — que trabalha com a produção de textos igual as lavadeiras de roupas em um rio: lava, lava, esfrega, esfrega e enxuga até não sobrar nenhuma gota de água supérflua. Ou seja, lava o texto até deixar palavras sem enfeites, expressando o real quase cru e duro da vida.


(Fotografia de Graciliano Ramos)

Partindo dessa ideia, compreendemos a escrita como um processo, um trabalho e não como um resultado ou como inspiração. Como assim? Escrever demanda estudo, planejamento, escrita, reescrita e revisão. Em outras palavras, não será resultado de assistir um filme ou ler um livro e, assim que concluir, escrever várias e várias laudas sobre aquele tema  quase impossível, convenhamos. Ao contrário, precisaremos de mais tempo, mais leitura, mais anotações, mais pesquisas e mais reflexões, até começar a escrever verdadeiramente. Além disso, quando começamos a escrever, podemos reler, apagar e reescrever diversas vezes, seja riscando o caderno, passando corretivo ou apagando várias palavras, frases, orações e páginas no computador, notebook. Muitas folhas ou muitas teclas de 'delete' serão usadas. Não é uma simples inspiração ou algo momentâneo. É árduo, duro, como lavar roupas.

Pode-se pontuar, que o desenvolvimento de pensamentos errôneos sobre esse trabalho, descende de preconceitos inerentes a realidade sociocultural e econômica do Brasil, como de outros países: se apenas ricos tinham acesso à educação, à escrita e à leitura, a sociedade e a própria elite difundiram essa conceituação de inspiração, limitando o espaço e impedindo o seu acesso. Logo, é muito mais um pré-conceito infundado.

Desse modo, é necessário que derrubemos também esse conceito abstrato longe do real, afinal, para produzir qualquer texto, o autor ou a autora também precisará pensar e refletir quais são os seus objetivos, o porquê escreve, para quem escreve etc. Não escrevemos para deixar palavras brilhando. E mesmo aquelas ou aqueles que assim o fazem, tentarão alcançar um tipo específico de leitor ou um objetivo mais restrito, por exemplo. Todavia, deixando de rodeios, não escrevemos para fazer brilhar. Escrevemos porque almejamos algo. O que você almeja? Qual é a opinião ou ideia que você deseja transmitir, compartilhar e expressar? Qual é o seu tipo de leitora ou leitor?

Minha cara ou meu caro, seja quais forem suas intenções, escreva, ainda que seja trabalhoso, escreva. Mesmo o desgraçado do Graça também escrevia, ainda que soubesse e tivesse consciência crítica da miséria humana, da pobreza e da exploração instituída aos mais pobres e vulneráveis. Será preciso que mudanças sociais e econômicas ocorram também para que a escrita seja lugar de todos? Pensemos. Escrevamos. Estudemos. 


— Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Sabe como elas fazem? 

— Não. 

— Elas começam com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mçao. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer. 

 (Conversas com Graciliano Ramos, Joel Silveira, 1938)


Fontes:

BAKHTIN, M. Os Gêneros do Discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. 

Conti Outra. Carta em que Graciliano aconselha a irmã como escrever. Disponível em: https://www.contioutra.com/carta-em-que-graciliano-ramos-aconselha-a-irma-sobre-como-escrever/  .

RAMOS, G. Conversas. SALLA, T. M; LEBENSZTAYN, I. (orgs). Rio de Janeiro: Record, 2014. 



Comentários

Postagens mais visitadas