Análise do conto "Os irmãos Dagobé" de Guimarães Rosa

Fiz essa análise ano passado como "treinamento" para uma prova e a leitura que tinha apenas esse objetivo, me surpreendeu com a temática, história, abertura de diversas interpretações e com a escrita do autor. 
Guimarães Rosa é conhecido por seus textos mais complexos e como minha meta um dia é lê-lo - e estou com dois livros dele, Sagarana e Grande Sertão: veredas - é sempre bom iniciar um autor mais conceitual por escritos dele mais "simples" ou melhor, mais curtos. Foi o que fiz por exemplo com Thomas Mann,  iniciei com o seu Morte em Veneza e li a sua obra de ensaios Travessia marítima com Dom Quixote

Aviso que esta análise apresenta spoilers, mas se você como eu não se importa, continue. No entanto, como esta interpretação foi de cunho muito pessoal e cheia de teorias, acrescento que seu ponto de vista ao ler pode ser diferente. Mesmo que você saiba, por exemplo, que "fulano" fará isso, etc., a leitura de como aconteceu pode ser mais surpreendente que a própria consequência. Além disso o conto não é longo e está disponível na internet, logo recomendo a sua leitura antes de ler esta pequena análise.
Afinal muitos gastam muito tempo nas redes sociais quando poderiam estar lendo ou fazendo uma infinidade de coisas... Mas até a rede social pode ser uma motivação para a leitura e informação, (quando bem usada) portanto não generalizarei.


Os irmãos Dagobé de Guimarães Rosa (In: Primeiras estórias)

O velório, a vingança e a trégua
O conto como espelho da realidade

Muitos são as teorias do que seria conto, e há aqueles, como o autor Mário de Andrade, que opina que a definição de conto fica a cargo de cada escritor. E existe mais opiniões como a de Poe — o primeiro a organizar e caracterizar o gênero — Machado de Assis e Cortázar, por exemplo, que afirmaram que o conto deve ter um efeito, que por sua vez deve prender o leitor em seu enredo desde o início. E cada um deles foi mestre em aprimorar sua originalidade usando dessa artimanha.
 Guimarães Rosa também se encaixa nesse círculo de autores, já que compreendia e utilizava técnicas e recursos importantes para a criação literária de qualidade. Isso provavelmente se explica por seu conhecimento linguístico e teórico literário. Mas sua relevância adveem principalmente de sua originalidade. Aproveitando de anedotas — estórias populares — e do inventário popular, Rosa soube mesclar imaginação e realidade muito bem, mostrando e afirmando diversas vezes em seus prefácios — em diversas de suas obras —, que a invenção deve ser o foco primário e a força criadora de qualquer contista. Ou seja, o pensamento lógico deve ter menos enfoque, para que dê lugar ao pensamento abstrato, de sonho ou simbólico.

Isso se faz presente em Os irmãos Dagobé, já que Guimarães retrata o cotidiano, mas acrescenta ficção e as conhecidas estórias populares, neste caso, assassinato e o desejo familiar por vingança, que até o final, cria um clímax ou conflito, e aqui vemos tal como teorizava Poe — a unidade de efeito.
A narrativa de Os irmãos Dagobé tem início no velório de Damastor Dagobé, morto por Liojorge, como dito, por legítima defesa, pois o finado tentara matá-lo. O espaço do velório é a casa grande, porém ao mesmo tempo sufocante dos Dagobé. As pessoas que ali chegam se amontoam ao redor do morto, temendo-o menos do que os seus irmãos, como afirmado desde o início, todos facínoras/cruéis. No entanto, de todos Damastor era o pior e parecia criar seus irmãos como escravos do crime, da maldade e os comandando, por ser o irmão mais velho. E talvez seja por isso que um certo alívio se instala para os vivos, afinal agora se livraram da mão de ferro.
O tempo do conto não fica claro, mas é curto e é indicado pela decomposição do morto, pela realidade e pelos detalhes na paisagem; a demora do enterro resulta no mau cheiro que só é resolvido quando fechado o caixão. O narrador em primeira pessoa que apenas observa e especula é o representante do pensamento coletivo sobre o que acontece e o que acontecerá, por isso fundamental. Além disso, são poucas personagens, entretanto de papéis relevantes para o acontecimeno, a exigência do gênero — a brevidade em todos os aspectos. Uma de suas características: o núcleo é apenas um fato, uma espécie de fotografia ou quadro de um acontecimento, apenas um breve dia ou momento.
Durante toda a estória por causa das primeiras afirmações da crueldade dos irmãos e suas confabulações, suas conversas e cochichos, temos quase certeza que “presenciaremos” a vingança pela morte de Damastor, contudo a expectativa é quebrada porque ao final eles decidem viver uma nova vida na cidade. E é assim que percebemos que a morte traz a liberdade.

O agora irmão responsável pelos bens da família — segundo a norma ou lei de hierarquia — libera Liojorge de sua sentença, logo depois do enterro — o marco para o fim e a chegada da decisão — pois este não pretendia matar, o que tem correlação direta com sua atitude corajosa e submissa de ir até o velório, sem armas, para mostrar sua boa vontade e quase entrega às suas mãos, atestados de seu caráter. Os irmãos livres parecem só terem praticado maldades porque o defunto exigia. Aqui surge algumas especulações: Damastor era um empecilho para seus irmãos? Seu enterro é como um marco erigido para o início de uma nova vida? Ou a crueldade faz parte deles também? Por ser irmão mais velho, teria aí sua influência e espelho ou ídolo que os outros se inspiravam?

Ao final da leitura, abre-se muitas portas para reflexões e esse é um dos porquês que o gênero conto é tão adorado e exaltado — alguns o consideram melhor que o romance — por diversos autores, como os já citados acima, e também por milhares de leitores, que há cada leitura redescobrem e percebem muitos mais detalhes que antes escapavam. Mesmo sendo um gênero curto, é possível atribuir diversas interpretações e visões, que dependem de cada leitor ou de sua época. E por esse motivo se faz necessária uma cuidadosa análise e deleite dessa arte que mistura realidade e o inconsciente humano, principalmente a obra tão vasta e repleta de simbologia de Guimarães Rosa que escreveu com toda a maestria, originalidade e conhecimento, que alguém profundo pesquisador e ouvinte do ser humano seria capaz.

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