Séculos... A quebra de paradigmas românticos em Gonçalves Dias



Depois de séculos venho dar o "ar da graça" - uma expressão religiosa?

E hoje gostaria de espalhar um pouco do conhecimento que consegui com o semestre difícil e denso da faculdade - esse último. E para isso, recomendarei uma obra do Romantismo, corrente e escola literária negada na minha atual fase existencialista e realista, porém esta é diferente das demais, já que apresenta uma personagem feminina que de início tem similaridades de outras criações da época, no entanto nos surpreende ao final. Então, ficaram com curiosidade?


"Que rufem os tambores! As cortinas se abrirão! Querido público, apresento: Leonor Mendonça, peça teatral de Gonçalves Dias!

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(Observação: alerto que haverá spoilers, porém a experiência de leitura e de possível visão da peça não é perdida, mesmo com a descoberta do desenlace da presente obra, afinal como verá a seguir, foi baseada em um fato real da época. Então, boa leitura e recomendo que assista a peça. Além disso, recomendarei o artigo que auxiliará na leitura e onde me baseiei para o fichamento acadêmico.)

PERSONAGENS
D. JAIME, Duque de Bragança.
LEONOR DE MENDONÇA, Duquesa de Bragança.
AFONSO PIRES ALCOFORADO, o velho. MANOEL,
ANTÔNIO e
LAURA, seus filhos.
FERNÃO VELHO, vedor do Duque.PAULA, camarista da Duquesa.LOPO GARCIA, capelão do Duque.UM SERVO.
UM PRETO.
HOMENS DE ARMAS, PAJENS E CRIADOS.

DE ALMEIDA PRADO, Décio. Leonor de Mendonça de Gonçalves Dias.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, p. 91-106, 1970.


“O mais belo drama do nosso romantismo — e talvez de todo teatro brasileiro — inspira-se num fato histórico: o assassínio de D. Leonor de Mendonça por suspeita de adultério, em 1512, pelas mãos do esposo D. Jaime, Duque de Bragança. Diz uma das velhas crônicas em que se baseou Gonçalves Dias: “ Foi o motivo deste injusto crime Antônio Alcoforado, môço fidalgo de poucos anos […] que na casa do duque tinha o mesmo fôro de môço fidalgo, e a quem a Duquesa tinha mostrado estimar em algumas ocasiões, com que, aumentando os falsos indícios, chegaram ao ponto da maior fatalidade.” /“Duas eram as possibilidades de enrêdo, observa Gonçalves Dias no Prólogo da peça: “o autor podia então escolher entre a verdade moral ou a verdade história — Leonor de Mendonça culpada e condenada, ou Leonor de Mendonça inocente e assustada”. […].”

Aqui vemos um exemplo do uso da história como inspiração para a ficção. Como bem comentado pelo próprio autor no Prólogo da peça: “A imaginação se incumbe deste trabalho, (trabalhar na forma de narrar o fato) (grifos nossos) e desde esse instante está criada a obra artística ou literária: — edifício ou sinfonia; estátua ou pintura; romance, ode, drama ou poema; boa ou má; perfeita ou imperfeita —, o fato é que ela existe.”

Muitos escritores se baseam  em fatos históricos, escolhem um ponto de vista, e então acrescentam o ideal vigente ou “filosofia”, nesse caso, como o olhar e a escola romântica predominava, o amor idealizado e impossível, ou mesmo a melancolia da existência, era posta em jogo.

“Gonçalves Dias, no entanto, preferiu a segunda hipótese — D. Leonor inocente — por dois motivos: para realçar tanto a “fatalidade” quanto “o etorno domínio dos homens” sôbre as mulheres. […] / […] na medida em que a Duquesa e Alcoforado forem inocentes, o Duque será culpado — e vice-versa. / Cabe ao rapaz, indiscutivelmente, a parcela maior de responsabilidade. O amor explode em seus lábios com ênfase nitidamente romântica, carregando a ação e o lirismo. É êle quem transforma Paula de confidente em alcoviteira, quem assedia a Duquesa até arrancar dela a promessa do encontro que se revelará fatal para ambos. […].” 

Embora o ideal romântico predominasse na peça de Dias, podemos notar uma crítica social: o papel da mulher na sociedade, então patriarcal e uma “jaula” para os desejos verdadeiros. Mas essa característica não se apresenta apenas nesta obra, mesmo que seja rara de encontrar em outras — pelo menos na corrente romântica.


“As razões morais de D. Jaime, ao contrário, são muito sólidas na aparência. Nem sequer podemos acusá-lo de desconfiança indevida: é Fernão Velho, o servidor fiel, quem lhe abre os olos, chamando-lhe a atenção para a fita da Duquesa que Alcoforado ostenta no barrete […] / A posição de D. Jaime seria inatacável, para a moral da época, não fôsse a selvageria com que se lança à sua missão punitiva. Há algo de excessivo no seu furor, de não condizente com a idéia de justiça, qualquer coisa que permaneceria inexplicável se a Duquesa, numa das primeiras cenas da peça, não nos tivesse advertido sôbre as estranhas condições em que o casamento se realizara, preparando-nos para compreender a explosão de odiosidade do Duque […].”

D. Jaime pretendia se tornar padre, porém fora obrigado a se casar pelos deveres sociais. E por isso suas ações são violentas, revelando alguém rancoroso e magoado, desejoso de encontrar um bode expiatório, que por sua vez, é sua esposa. Tanto que mesmo declarado a inocência da Duquesa, ele prefere não ouvir, aparentemente uma mostra de que quer só se libertar desse casamento imposto.
Portanto, não é só a Duquesa que se sente aprisionada pelos ditames da sociedade, no entanto, de alguma forma muitos das personagens estão atadas aos seus deveres, assim abandonando suas próprias vontades.

“O plano moral começa a revelar-se insuficiente para retratar a complexidade dos fatos. Bons e maus? Inocentes e culpados? Estas categorias, tão caras ao melodrama romântico e à ficção popular, não serão rigídas em demasia para corresponder à ambiguidade moral do Duque e da Duquesa de Bragança, sobretudo quando passamos o terreno firme dos atos para a areia movediça das intenções? Se desejarmos de fato entender a realidade, é necessário ir além das razões oficiais, sondando os motivos obscuros. Compreender, não condenar ou absolver, terá de ser a nossa tarefa crítica. É de resto, o convite que nos faz Gonçalves Dias, ao comentar as suas personagens: “Leonor de Mendonça não tem nem um só crime, nem um só vício, tem só defeitos. D. Jaime não tem crimes, nem vícios; tem também, e sòmente, defeitos. […] / Consideremos então as circunstâncias psicológicas: “ No primeiro plano, o duque, a duqueza e Alcoforado. Alcoforado dedicado e extremoso, a duquesa agradecida e imprudente, e entre ambos, o duque sombrio e desconfiado”. Em outras palavras, o panorama clássico do adultério no século dezenove: o casamento sem amor, a espôsa em plena disponibilidade afetiva […], o rapaz solteiro fascinado pela grande aventura romântica da paixão moralmente condenada. […].”


Mais uma vez a prova de que Leonor de Mendonça — a peça — foge do tipo preto ou branco, bom ou mau, da literatura até então vigente; o que lemos são personagens humanas e falhas. E tal como dito por Décio, aqui não devemos julgar as personagens, e sim tentar compreendê-las: por que fez isso? Por que disse isso? Por que é assim? Suas atitudes são reflexos do seu passado?Perguntas que esclarecerão nossas dúvidas sobre a personalidade de cada um.

“A Duquesa rompe de vez a convenção romântico-medieval, instala-sa em definitivo no realismo psicológico. […] / É que ela, ao inverso dos dois homens que a perderam, não ama, consciente ou inconscientemente, a morte: ama a vida. A duquesa não sonha em ser heróica: quer apenas defender-se, agarrando-se à vida com unhas e dentes […] / Em Leonor de Mendonça, Antônio Alcoforado e D. Jaime aceitam, em larga medida, os seus papéis: o mancebo apaixonado e o nobre traído. […] Mas D. Leonor repele a parte que lhe atribuíram, nega-se a representar até o fim a tragédia da aristocracia. […]. Esperávamos encontrar uma heroína clássica ou uma idealização romântica e surprendêmo-nos ao deparar com um ser humano vivo e imprevisível, que não se deixa reduzir por nenhuma espécie de convenção, seja artística ou social.  / D. Leonor, instinto de vida, em oposição a D. Jaime e Antônio Alcoforado, instintos de morte. Eros e Thanatos.

 Curiosamente, vemos a base de toda a peça, como já dito diversas vezes nos pareceres anteriores: a fuga do velho clichê romântico.

As personagens com suas complexidades chegam ao limite do realismo. Principalmente a protagonista que até o último momento não quer aceitar seu papel naquela peça imposta pelos homens. Ela chega a declarar que seu infeliz destino fora ter nascido mulher. Ou seja, mesmo em pleno romantismo, quando a mulher inocente e submissa era idolatrada, nos deparamos com uma personagem que transcende sua época e se recusa ao seu infeliz desenlance. E o impressionante é que Leonor não deseja morrer, embora o mundo seja cruel. Entra assim a mitologia, no trecho citado: Eros e Thanatos, que serviram, assim parece, como alicerce para a psicologia, visível na peça. 



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