Verdade absoluta? Anime Shingeki no kyojin e a discussão sobre pontos de vista


ALERTA DE SPOILERS DO MANGÁ E ANIME SHINGEKI NO KYOJIN



(Poster da última temporada de Shingeki no Kyojin produzida pelo estúdio Mappa)

Mangá desenvolvido por Hajime Isayama.


Muitos desejam passar a ideia de verdade, de um mundo preto e branco, simples, maniqueísta, dicotômico.

Enquanto isso, há séculos é possível resgatar pensamentos e teorias de filósofos, cientistas - principalmente Albert Einstein com sua Teoria da Relatividade - e escritores que revelam que não é bem assim. E se lembrarmos até as perspectivas e trabalhos desses nomes históricos são diferentes mesmo que sejam sobre os mesmos fatos ou objetos. Podemos tirar exemplos dentro da própria área Linguística: o Gerativismo que desejou substituir o Estruturalismo e as teorias funcionalistas que viram brechas deixadas pelas anteriores que não visavam o estudo do uso da língua, em outras palavras, como o usuário usa o sistema linguístico na sua vida cotidiana. O que se percebe é que as teorias surgem para suplantar, criticar, seja porque divergem, desejam cobrir uma lacuna ou melhorar a anterior, entre outros motivos.



(Sim, soldados usam espécies de espadas e outro equipamento para se locomover e matar titãs). 

E o mangá e anime japonês conhecido mundialmente por causa de suas quebras de clichês e paradigmas, Shingeki no kyojin, Attack on titan ou Ataque dos titãs em português, pode contribuir para trazer uma importante discussão à baila, ao apresentar duas perspectivas/pontos de vista diversas sobre a história de um povo.

O enredo se desenrola com a luta pela sobrevivência da humanidade contra os titãs, seres que só se alimentam de seres humanos, surgidos há um século, não se sabe de onde, nem sua origem e o porquê desses hábitos, já que não possuem o sistema digestório e nem o reprodutor. 
Acompanhamos então uma sociedade empenhada em pesquisar esses mistérios e assim suas tentativas, em sua maioria, falhas de se tornarem livres, tal como os pássaros, constante simbologia em toda animação - existem diversas significações e simbologias em relação a objetos e animais além da liberdade representada pelas gaivotas/aves; também há o jogo da imagem constante de um tipo de flor de cor lilás, desde o primeiro episódio e a sua relação com sangue.
 

Todavia, dada a fragilidade humana e sua falta de preparo para casos extremos de perda e morte, assistimos gritos histéricos, chamados por ajuda e paralisias diante desses titãs com rostos idiotizados propositalmente pelo autor da obra, numa forma de nos aterrorizar mais ainda, e podemos aqui remeter aos zumbis, seres decrépitos, mas que ainda causam terror, nojo, talvez por relembrar a mortalidade e a impossibilidade de fuga do fim - analisando filosoficamente.

Muitas críticas surgiram por conta dessa vulnerabilidade dos humanos que mesmo possuindo equipamentos preparados especialmente para eliminar titãs, um preparo físico e treinamento militar, ainda se chocam ao encontrar esses seres. 
Os fãs de animes japoneses estão acostumados com heróis destemidos, sem nenhum tipo de medo, ou seja arquétipos de heróis, acima de seres humanos, super humanos, como os heróis gregos retratados nos poemas épicos e mitos tão conhecidos: Odisseia, Ilíada Odisseu ou Ulisses e Aquiles, respectivamente, e inclusive de tragédias e do próprio mito, como Édipo. Notamos que na verdade não é uma característica vinda somente de otakus (fãs de animes). Nós estamos acostumados a idealizar as pessoas e a realidade, logo é compreensível que muitos critiquem essa humanidade e complexidade demonstrada pela maioria das personagens de Shingeki no kyojin.



Esse resumo revela a razão do mangá e anime se tornarem famosos, não é? A construção desse mundo aparentemente medieval e sustentado por uma agricultura muito rudimentar, e aliás, um mundo ou tipo de país/lugar onde os seres humanos vivem presos em muralhas construídas para protegê-los contra seus predadores - três muralhas, a Shina, Rose e a Maria, talvez a explicação para sua rudimentariedade, afinal vivem fechados, sem contato com o mundo lá fora. E por isso Eren Yager e Armin Arlet, dois dos protagonistas, almejam sair dali e conhecer o mar. O que no fim, descobre-se que há mais segredos a se imergir. 


Observe as expressões de Armin (à esquerda) e de Eren (à direita):
 
As reações ao encontrar e alcançar o sonho tão almejado são diferentes: Armin e os outros recrutas da Tropa de Exploração (existe uma divisão das polícias com a Tropa de Exploração, a Tropa Móvel e a Polícia Militar) é de alegria e contentamento. Mas Eren não apresenta essa expressão, afinal descobrimos nos episódios finais da terceira temporada que existem inimigos depois do mar.



(Imagem tirada do mangá)

Conforme adentramos na história somos apresentados a um sistema religioso, político e social de manipulação, revelado aos poucos somente na primeira parte da terceira (a quarta sairá esse ano, 2020). 

Por trás de uma história sangrenta e uma atmosfera de busca pela sobrevivência, sob a perspectiva dos soldados que dedicaram seus corações a proteger seu povo, vamos percebendo ao longo das três temporadas que essa sociedade guarda muitos segredos: manipulação da verdade além-mar, do controle da população através de um governo e uma polícia militar opressora, torturadora, capaz de tudo para proteger o rei e manter a paz dentro das muralhas. Numa das cenas icônicas da terceira temporada, um dos policiais totalmente devotado a causa e convicto de sua missão, diz que fez aquilo tudo porque era preciso para manter a paz - segundo a perspectiva dele, os fins justificam os meios. E no momento seguinte, começa a chorar, demonstrando que se arrepende, embora ainda ache que não havia escolha, era necessário. Ele foi uma peça, um operário para a grande máquina monárquica. 
Isso mostra a face racional de um sistema autoritário que ainda que cometa suas atrocidades contra "aqueles perigosos a ordem", exatamente por isso, acha que tem razão, já que tem toda uma espécie de doutrina sustentada por crenças "patrióticas".






A partir daqui me proporei a discutir segredos que ainda não foram revelados completamente na animação, portanto esteja ciente de spoilers caso queira continuar. Esses detalhes têm muita relação com o título, se você já estava se perguntando qual era a relação das diferentes perspectivas, além dos fatos relatados do próprio sistema de governo dentro das muralhas.

Mais a frente da história descobriremos por meios de cartas que além-mar existe um povo inimigo dos eldianos, os habitantes da ilha de Paradis, os personagens conhecidos desde a primeira temporada. Esses inimigos são os marleyanos. 
E então abre-se uma nova perspectiva para o leitor e no futuro, o telespectador, visto que depois aparecerá no anime. Se no início somos apresentados a um olhar de Paradis, na segunda parte do mangá, somos jogados a visão de mundo dos "inimigos". Dessa forma, somos confrontados a refletir sobre os pontos de vista. Enquanto os eldianos não sabiam da existência dos marleyanos até o momento, estes os considera monstros e também são manipulados por mitos relacionados aos eldianos. O mito de uma deusa que fez pacto com o demônio, Ymir, constituí a base para a criação de um ódio, de um desprezo e da desumanização de um inimigo desconhecido. Desumanizam os eldianos para controlar mais facilmente os próprios eldianos - ou eldians - que vivem em Marley.



(Para além de Paradis existem outros países e nações que os detestam ou possuem preconceitos contra os eldianos. E Marley é a nação/país inimigo principal). 



Alguns soldados eldianos, "reféns" e obrigados a se tornarem soldados dos marleyanos, porque devem a eles suas vidas e de sua família em Marley, e porque somente eles podem se tornar titãs - sim, mais um dado importante, somente eles podem se transformar; antes achávamos que qualquer um poderia se transformar, entretanto descobrimos depois que apenas os habitantes de Paradis podem se tornar titã, e assim ser racional, ter poderes como foram os casos do Eren, do Berthold, do Reiner e da Anne. 
Quando esses soldados se infiltram na ilha Paradis veem suas crenças irem por água a baixo: os monstros, demônios, desumanos, possuem sentimentos, têm desejos, sonhos que são destruídos, mas que ainda assim lutam contra tudo. São humanos como eles.


(A partir do volume 23 do mangá seremos apresentados a perspectivas dos eldianos que vivem em Marley)


Dois mundos se chocam, dois olhares se colidem, criando várias faíscas e desenvolvendo uma narrativa e história mais profunda sobre pontos de vistas: quem realmente está certo? E se ambos os lados estiverem errados? Essas perguntas ainda estão para serem respondidas, pelo menos enquanto o mangá estiver sendo desenhado e planejado por Isayama. E fica claro o quanto a história trará mais guerras, mais dores, já que quando lados opostos se encontram, nenhum deseja enxergar o outro como humano, afinal isso pode criar conflitos e acabar com o estado de guerra.



(A produção do anime vai para a quarta e última temporada nesse ano, trazendo um desfecho com muito sofrimento e brigas entre lados e objetivos, agora mais problematizados e aprofundados). 


Muitos detalhes e personagens poderiam ser analisados com diferentes enfoques, no entanto infelizmente, fugiria do foco dessa postagem que era mostrar a relatividade da realidade e que não existe uma verdade absoluta. Contudo, é importante frisar que visões diferentes não devem ser justificativa para morte, violência, autoritarismo, superioridade e o genocídio (principal ponto que surge nos capítulos mais à frente do mangá). 
E para isso, levando para o nosso real, sabemos, foram criados documentos assinados pelas nações para garantir direitos e deveres iguais, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição Federativa do Brasil de 1988.

E em Attack on titan até o presente momento, não há uma garantia ou tratado de paz. Em muitos países do nosso globo, também ainda não existe. Talvez esta tenha sido uma das influências para a "criação" desse anime, que como qualquer entretenimento pode ser visto como mera peça das engrenagens do consumo e do mercado, contudo, pode ser também analisado em trabalhos, artigos, ensaios ou textos como este. Contribuindo para uma construção de conhecimentos, uma rede que pode continuar com outras análises e outros pontos de vistas. Esta é a essencialidade e relevância das ciência. E esperamos, supere a falta de motivação e de recursos.  

Quem dera a palavra e principalmente as constituições não fossem meros documentos belamente escritos, e sim, tornados ações e atitudes. Quem dera... 

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