Crônica: Relembrando a coragem de ser-se



(Fotografia de Thalya Amancio, 2020).

RELEMBRANDO A CORAGEM DE SER-SE


Passei quase dois anos sem decidir escrever sobre o significado de marcar a pele com a famigerada tatuagem. Sim, eu tenho duas, muito significativas no mesmo braço, o esquerdo. Tenho a flor de Lis mais acima e a frase "we're made of star stuff" mais abaixo. Localizações fáceis e marcantes, próximas ao coração, músculo que bombeia o sangue por todo corpo, espalhando a vida e gerando vida. Provavelmente eu quereria marcar que eu geraria vida de mim mesma… Inconscientemente, sim. São suposições que faço agora.


Quando as fiz, foi quase por acaso, mas decidi minimamente quais seriam. Por acaso? Sim, porque eu ganhara as duas tatuagens em um sorteio. Parecia que o acaso brincava comigo e dizia: "seja destemida, enfrente seus medos". Eu que sempre fora cuidadosa, cautelosa demais, decidira me arriscar. Este fora um recomeço de muitos outros, o ano era 2019 e o mês era julho. Já fazem dois anos. Eu marcara, um recomeço, como qualquer ser humano, porque gostamos de significados, de datas comemorativas, de datas de renascimentos; adoramos relembrar. E talvez eu seja uma dessas que gosta muito de criar e amadurecer ideias a partir de datas. Vamos dizer que é uma forma de autoconhecimento e de procura. E quando eu invento essas palavras que passaram na minha mente, como se fosse o acaso, indiferente a mim falando, eu crio a ideia de mim. Ou talvez a volta do rastreamento de mim. No mesmo ano, em março, eu relembrara de um certo trauma guardado a milhares de chaves abaixo do meu subterrâneo consciente (eu não esquecera totalmente). Por isso, as tatuagens relembrariam a decisão de não me negar. Eu não poderia seguir cautelosamente pelos cantos, me escondendo de mim mesma. Ou fugindo de mim mesma.


Às vezes esqueço que tenho tatuagens e as olhos assustada, fascinada. "Eu tive coragem!" São insígnias - digamos assim - da minha coragem e da minha ousadia, aspectos que eu costumava esquecer. São marcas, como os textos que escrevo e me recordo anos depois: "eu escrevi isso!" Até parece que não somos incríveis simplesmente por sermos nós e por sempre estarmos tentando. Claro que imperfeitas/os somos, mas somos incríveis por viver, afinal viver é muito perigoso. E somos incríveis por recomeçar, nos recriando a partir dos cacos e das partes quebradas.


E fora a (re)criação de mim naquela tarde de julho, da raspagem da pele e da marcação de que eu era ARTE, para além de humana frágil, vulnerável, grão de poeira, eu era arte. Meu corpo me pertencia e eu tinha direito de marcá-lo, torná-lo meu.

 De extender meu corpo para o papel, para a metamorfose de mim. Eu seria arte, sem vergonha de ser eu mesma; sem vergonha de ser tocada e sentir prazer em me libertar em outras tantas danças, seja das mãos, seja dos corpos. As insígnias seriam rememoração de que eu valia, de que eu sou minha escrita, minha busca por conhecimento. Eu sou e sempre serei multiplicidades. Eu sou arte e viver é ser arte, é ser palavra e recriação.


E espero que em dias tristes, desanimadores e frustrantes, você leitora ou leitor também possa se lembrar de que é e pode ser voz, arte e literatura. "Cantem", mesmo que roucos ou desafinados. Contem também seus insights e suas histórias para o mundo.




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