Crônica "O Mato" de Rubem Braga

Inspirada - ou influenciada - pela leitura da obra com a seleção de 200 crônicas de Rubem Braga venho trazer na versão integral, uma das crônicas que me tocaram por sua delicadeza em descrever a relação, por vezes negada ou esquecida, entre o ser humano e a natureza.
Quantas vezes na correria do dia a dia paramos para apreciar realmente a natureza? Rubem Braga traz essa reflexão com suas crônicas, além de outros temas claro. Ele fez sua fama como escritor apenas escrevendo este gênero para jornais. Muitos podem achar impressionante e realmente é, afinal como um gênero tão limitado pôde tornar alguém famoso? Bom, para começo de conversa Rubem com sua agudeza e observação conseguiu em exprimir com poucas palavras a VIDA.
Seja falando sobre um pé de cajueiro, suas próprias experiências, devaneios existenciais, o cotidiano, o amor, a beleza da simplicidade, a paixão, os momentos perdidos, a passagem do tempo... Enfim, a vida em sua simplicidade.




(Trabalho surrealista de Matt Wisniewski)



Escolha uma música ou músicas para ouvir. Você não é obrigado, mas tenha certeza, uma leitura melhora consideravelmente com uma playlist. Aprecie a arte!

Boa leitura e recomendo conhecer mais desse autor, simples, mas apoteótico!






O Mato
Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.


Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma benção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impacientes de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.


Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos – mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com uma pele de musgo e seu misterioso coração mineral.


E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angustia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz.

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