Um mundo contra sonhadores: miniconto sobre café e devaneios. Uma intertextualidade com Carlos Drummond de Andrade

Depois de tempos, aqui estou de novo. A quarentena deve dar muito a pensar e muito a devanear. E esse miniconto que escrevi há um longo tempo, um tempo que eu me permitia devanear muito mais, até demais, eu vivia mais distante da lógica, mesmo que ela ainda me componha.

É sobre um homem que mesmo possuindo intimidade com quem ama, quem conhece e convive, ainda receia se revelar; podemos dizer até que não se permite fazer isso. Teme parecer muito perdido, muito apaixonado, muito Ele. Mas na hora do café, esse momento o permite sonhar, devanear, porque sozinho, ele se sente mais livre. E então qual o motivo de ele não se revelar, qual seria a razão de seu medo? Uma sociedade que como no poema  "Sentimental" de Carlos Drummond de Andrade, não aceita sonhadores? Um mundo que se mostrar vulnerável é perigoso?   Ou um motivo mais pessoal: aquela mulher é uma desconhecida?






Assistir tudo cair era seu desejo. A dor lhe trazia encantamento e de certa forma atraía. 

Tudo que possuía, tudo que tinha vida, um dia desabava. Segundo pesquisadores e cientistas estavam fadadas a morrer, então por que sofrer antecipamente? Não seria bom antes de tudo observar o espetáculo da destruição iminente? Expressaria beleza? Qual seria a expressão dos outros? Daria tempo fotografá-los?  

Ele devaneava enquanto o café borbulhava no fogão, logo logo estaria pronto e assim poderia tirá-lo e coá-lo na pia velha. O cheiro era embriagante e se misturava a seu próprio suor. 

-Pain is beauty, arriscou. Nesses momentos liberdade, solta no calor que lançava seus jatos no ar. 

-Fazendo café? - ela apareceu na porta e se sentou.
Droga!

Era hora de voltar ao velho eu. 


-Sim. - respondeu simplesmente. 





René Magritte
            (O terapeuta por René Magritte)







Bônus: poema "Sentimental" contido no livro Alguma poesia

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçadas na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

Carlos Drummond de Andrade





Mais um bônus: música Dreamers de Ozzy Osbourne (que tal fazer uma intertextualidade e intersemiótica, ou em outras palavras, perceber como as expressões da arte podem ser conectadas entre si?) 




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