Sintonias da liberdade: uma análise da música Radio da banda alemã Rammstein

Radio / Letra e tradução // Rammstein Portugal


Nesse post pretendemos (Rosangel de Freitas e eu, Thalya Amancio) analisar a música Radio do álbum homônimo da banda Rammstein lançado esse ano. Mas antes se faz necessário, como presumimos que muitos não conheçam esse grupo do Metal Industrial, o apresentarmos, citando suas características principais, fatos importantes, músicas e álbuns para compreender toda a visão dos integrantes:

Fazem parte do grupo: Till Linderman (Vocal), Richard Z. Kruspe (Guitarra e Backing vocals), Paul H. Landers (Guitarra e Backing vocals), Oliver "Ollie" Riedel (Baixo), Christoph "Doom" Schneider (Bateria e Percussão eletrônica) e Christian "Flake" Lorenz (Teclados).


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Rammstein banda formada no ano de 1994 em Berlim, capital da Alemanha, é conhecida por músicas críticas, que fazem intertextualidades com narrativas pré existentes. Críticas essas, ácidas e que pretendem demonstrar perspectivas e novos pontos de vista de histórias e de fatos da História, sempre tendendo a ironias, além de algumas vezes também realizarem brincadeiras com conotações sexuais. O que não exclui também o uso de metáforas, o que acaba caracterizando certas canções como poéticas.


Percebe-se assim que esta é uma banda consistente que criou um visual complexo e de nuances entre o satírico, o sarcástico, o metafórico e o teatral, resultando em um pano de fundo para um sentido para além do superficial, estando nas entrelinhas tanto das letras quanto dos vídeos, cheios de simbologias, que passam despercebidos por muitas pessoas, gerando polêmica à primeira impressão, pela falta de uma interpretação mais aprofundada.

 Toda a carreira do grupo é pautada principalmente em controvérsia já que optam por abordar temas complexos, sempre palcos de debates acalorados e como já dito, gerando confusão de interpretação: religião, inquisição, holocausto, a sexualidade, o próprio sexo, a americanização cultural realizada pelos Estados Unidos no contexto da Globalização, entre outros tantos que são tópicos que acirram discussões.

Até o nome da banda apresenta o uso de uma metáfora com o fim de um significado profundo de embate, o que mostra claramente que eles desenvolvem e escrevem suas letras tendo todo um aparato de simbologias: Ramstein (sem um m) é uma cidade onde aconteceu um acidente aéreo em 1988 que deixou setenta mortos e mais de quinhentas pessoas feridas. O outro m vem de ramen, “entrechocar, bater, cravar”. Rammstein traduzido dá o sentido literal de aríete, objeto de guerra utilizado para arrombar/invadir grandes portões de castelos, muralhas ou fortalezas. Compreende-se a partir da análise etimológica, logo o objetivo da banda alemã em denominar-se assim: eles pretendem chocar, ir contra, derrubar convicções. Ser assim um contraponto ao que foi instituído. Um “nein” ao que não é comentado, por ser um tema delicado.

A voz e todo arranjo musical, além das composições atordoantemente fortes, realmente conseguem alcançar o fim. Acrescente-se ainda a pirotecnia e toda a teatralização, seja nos shows ou vídeos produzidos e será possível vislumbrar toda a confusão que o grupo é capaz de fazer a um primeiro espectador desatento e ignorante quando o assunto é esse gore musical, assim digamos.


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Como aludido, Rammstein tem uma preferência por reconstruir ideias, redefinindo-as, repensando até contos de fadas, e sempre desenvolvendo suas simbologias. Em Sonne música do álbum Mutter (2001) é trazida uma nova roupagem do conto da Branca de Neve: a personagem é viciada em drogas e escraviza os integrantes da banda para conseguir a matéria-prima para seus ‘delírios’.

Outro exemplo é uma canção também do mesmo álbum de 2001, Ich Will, esta totalmente ligada a letra e vídeo que serão analisados mais a frente. Nela vê-se o quanto a mídia pode manipular, controlar informações e desejos do público, chegando a afetar diretamente a vida das pessoas, as “ferindo”: “Eu quero controlar cada batida do coração”, diz um trecho. E para então poder “controlar” outras pessoas é essencial ter sido aceito dentro do discurso tido como verdade. 

Rammstein - Ich Will (Official Video) - YouTube


Michel Foucault em A Ordem do Discurso (1970) defende sua tese demonstrando exatamente esse ponto: nenhum discurso é neutro, todos revelam o seu teor ideológico, sua posição social, histórica e cultural, deixando rastros de ponto de vistas, e, sempre haverá um discurso que se sobrepõe ou é posto a outro como único e verdadeiro, se tornando o aceito, aquele que se tornará regra ou dogma. E poucos são aqueles que poderão ser ouvidos ou pelo menos participar de espaços onde essa “verdade” é compartilhada. A maioria se torna meramente fantoche frente à ‘Mídia’, obrigados a apenas responderem se escutam ao chamado: “Vocês podem me escutar? (Nós te escutamos) ”, mais um trecho de Ich Will

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O aríete tenta então quebrar as barreiras das verdades instituídas, apresentando novas posições? Ao criticar a manipulação de informação e recriar novas versões de clássicos idealizados, Rammstein vem como o movimento de Contracultura, pois vem questionar e destruir visões tradicionais. Por isso até o tratamento do sexo em várias canções, como a controversa Pussy, tema este ainda tabu social, como bem afirma Foucault no livro já citado, aponta que a banda tem com toda certeza uma complexidade que geraria mais de uma interpretação do ouvinte.

Nosso intuito é portanto, mostrar caminhos para uma interpretação da música Radio. Porém deixamos em aberto para novas possibilidades plausíveis de olhares sobre o mesmo objeto.

Para entendermos a letra da música é preciso compreender primordialmente o contexto que ela aborda. Temos que ter em mente que a letra aborda a conjectura da DDR (Deutsche Demokratische Republik), conhecida como Alemanha Oriental, especificamente acerca da censura sofrida pelas emissoras de rádio e por essas não poderem exibir material que não fosse aprovado pelo Estado (que por sua vez era controlado por baixo dos panos pela União Soviética) e pelos cidadãos dessa região que faziam o que podiam para ouvir as notícias do mundo exterior. Uma vez que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o território alemão foi dividido em quatro distritos: Franceses no sudoeste, Estados Unidos no sul, Grã-Bretanha no noroeste e União Soviética no leste. Sabendo de parte do contexto vivenciado na época por parte dos ale, podemos começar a análise da letra.






Radio

1ª Estrofe

Nós não fomos autorizados a fazer parte

Ver, falar ou ouvir nada

Mas toda noite por uma ou duas horas

Eu saio deste mundo

Toda noite um pouco feliz

Meu ouvido muito perto do receptor do mundo



Refrão

2ª Estrofe



Rádio, meu rádio (meu rádio)

Eu me deixo sugar para o éter

Meus ouvidos tornam-se olhos

Rádio, meu rádio (meu rádio)

Então eu ouço o que eu não vejo

Silêncio em segredo desejando viajar



3ª Estrofe

Nós não fomos autorizados a fazer parte

Ver, falar ou perturbar nada

Todo corpo da canção foi proibido

Notas estrangeiras tão perigosas

Mas toda noite um pouco feliz

Meu ouvido muito perto do receptor do mundo



Refrão

4ª Estrofe



Rádio, meu rádio (meu rádio)

Eu me deixo sugar para o éter

Meus ouvidos tornam-se olhos

Rádio, meu rádio (meu rádio)

Então eu ouço o que eu não vejo

Silêncio em segredo desejando viajar



5ª Estrofe



Toda noite eu subi em segredo

Na parte de trás da música

Coloco os ouvidos nas asas

Canto quietamente nas mãos

6ª Estrofe?

Toda noite e de novo eu voo

Apenas longe com a música

Flutuando por todas as salas

Sem fronteiras, sem cercas



7ª Estrofe

Rádio, rádio

Rádio, rádio



Refrão

8ª Estrofe



Rádio, meu rádio (meu rádio)

Eu me deixo sugar para o éter

Meus ouvidos tornam-se olhos

Rádio, meu rádio (meu rádio)

Então eu ouço o que eu não vejo

Silêncio em segredo desejando viajar



Como foi dito, a letra se baseia em expressar a situação do cidadão que morava do lado Oriental (Soviético) da Alemanha, onde havia a censura das rádios que não fossem aprovadas pelo estado, sejam as que estavam fora do lado Oriental, as que ousavam tocar músicas em outras línguas fora o alemão ou até as que emitiam notícias ditas “contra o estado”. Por causa dessa censura muitas pessoas tentavam, de forma clandestina e por breves momentos da noite, sintonizarem as rádios que não eram controladas pelo departamento de censura do governo. É visível em vários trechos da música, como na primeira estrofe e terceira estrofe:



Nós não fomos autorizados a fazer parte

Ver, falar ou ouvir nada

Mas toda noite por uma ou duas horas

Eu saio deste mundo







É importante entender que os meios encontrados para achar os “ouvintes clandestinos” eram diversos. Dentre eles, é possível citar as câmeras secretas colocadas em locais de difícil acesso, como botões, caixas e até em árvores. No entanto, a forma principal de espionagem era a de agentes infiltrados em locais com um fluxo grande de pessoas, desde condomínios, hotéis ou até trabalhando em fábricas. Era uma grande dificuldade escapar da vigilância, nem mesmo sendo possível confiar em um membro da família, como pode ser visto no filme ganhador do Oscar de filme estrangeiro no ano de 2007, A vida dos outros (2006), onde o protagonista é denunciado por sua mulher, após seis anos de casados. Tudo isso orquestrado pelo Ministério de Segurança do Estado, conhecido como Stasi. Após denúncia e captura do suspeito, a Stasi se encarregava de aplicar a punição por conta própria, levando em consideração que eles dispunham de um sistema carcerário individual e uma força de elite pessoal para os integrantes do gabinete.


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Na segunda e na quinta estrofe é possível perceber o uso de sinestesia para exemplificar as ânsias, os desejos e as sensações de quem arrisca a liberdade individual para se desprender por alguns instantes daquela realidade opressora que o estado criava ao restringir o consumo de entretenimento em prol da imagem geral do Governo da Alemanha Oriental. Constantemente durante o refrão isso fica nítido:



Rádio, meu rádio (meu rádio)

Eu me deixo sugar para o éter

Meus ouvidos tornam-se olhos

Rádio, meu rádio (meu rádio)

Então eu ouço o que eu não vejo

Silêncio em segredo desejando viajar



Durante a terceira estrofe, as críticas se tornam mais diretas, principalmente na terceira e quarta linha, onde se fala acerca da proibição de qualquer música ou banda que não fosse aprovada pelo Estado. Qualquer música que criticasse o modelo autoritário de administração da Alemanha Oriental era logo negado e não passava nas rádios locais.

Ao caminhar da quinto estrofe os sentidos da letra tomam aspectos mais simbólicos, com alusão ao sentimento de liberdade que os ouvintes sentem, ao mesmo tempo que alimentam a esperança do dia em que mais não sofrerão com a censura, sem a necessidade de cantarem baixinho com a mão na boca, sem mais cercas para os impedirem de serem livres.

Segundo Guy Debord, devido à ocasiões provenientes dos processos de autonomização, tanto da tecnologia quanto da sociedade, as relações humanas acabaram se adaptando conforme imagens oriundas dos impactos da época vivida, sendo essas imagens criadas em âmbitos diferentes, como cultura, política e até, na contemporaneidade, nas redes sociais. Quando as imagens são aplicadas, faz-se um véu em torno da situação representada, omitindo a realidade e a gravidade da situação, e quando um conjunto de imagens molda o fervor de uma nação, podemos dizer que temos um espetáculo, visto em A Sociedade do Espetáculo(1967). Isso está diretamente ligado com os conceitos aplicados pela banda alemã em sua música, sobretudo acerca da visão destorcida que foi imputada pela autocracia instaurada na parte oriental da Alemanha ao povo, que devia ver tudo que viesse de fora como maligno, destrutivo para o ideal imposto. O estado atuou diretamente para a criação dessas imagens, esse esforço em prol de manter a aparência e evitar revoltas, embora este não tenha conseguido sustentar sua mentira ao caminhar que o espetáculo foi crescendo.

Em suma, a letra reflete sobre o quanto estamos dispostos a arriscar pela nossa liberdade ao mesmo tempo que lida com questões delicadas de um período marcado por intensos conflitos internos e perseguições na história alemã. Ser livre, na ideia passada pela banda é mais do que ouvir uma rádio proibida, é sentir-se livre ao poder sonhar que um dia não terão mais amarras e assim poder ganhar asas para voar e alcançar o tão sonhado Éter, que podemos conceber como liberdade individual.


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(Essa crítica a censura do regime soviético também se faz presente na Literatura, vide o clássico da distopia 1984, escrito por George Orwell)

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