Última leitura: A Redenção de Gabriel de Sylvain Reynard


Trilogia, ano de publicação no Brasil pela editora Arqueiro: O Inferno de Gabriel (2013), O Julgamento de Gabriel (2013) e A Redenção de Gabriel (2014). 

Prólogo

1292

Florença, Itália


"O poeta se levantou da mesa e olhou pela janela sua adorada cidade. Embora a arquitetura e as ruas o chamassem, o faziam com vozes ocas, sem vida. Era como se uma grande luz tivesse se apagado, não só na cidade, mas no mundo todo. 'Quomodo sedet sola civitas plena populo! Facta est quasi vidua domina gentium…' * Ele correu os olhos pela citação do Livro das Lamentações, da Bíblia, que escrevera havia pouco. As palavras do profeta Jeremias eram tristemente inadequadas.

– Beatriz – sussurrou ele, o coração se apertando no peito. Mesmo agora, dois anos após sua morte, era-lhe difícil escrever sobre essa perda. Ela permaneceria para sempre jovem, nobre, e seria eternamente sua bem-aventurança, e nem toda a poesia do mundo conseguiria expressar sua devoção por ela. Mas, em consideração a sua memória e ao amor dos dois, ele tentaria."

* - “Como está deserta a cidade, antes tão cheia de gente!

Como se parece com uma viúva, a que antes era grandiosa entre as nações!” Lamentações 1:1, NVI (N. do E.)


Obra contemporânea e clichê?


No terceiro livro e último da trilogia - começada com O Inferno de Gabriel e tendo O Julgamento de Gabriel como continuação - embarcamos na construção da ideia de amor e finalmente de família, do personagem intenso Gabriel e da sua doce amada, Julianne ou Julia. Depois de casados acompanhamos o amadurecimento dos dois de diversas maneiras, sejam pessoais ou de convivência social. Ambos tiveram uma infância complicada: abandono e negligência parental, por exemplo. Além de relacionamentos tóxicos, abusivos e destrutivos, principalmente no caso de Julia ao descobrirmos que ela teve um namoro problemático e traumático com Simon, filho de um senador, que o narrador focará em alguns momentos nessa obra - como também focou outras perspectivas através do narrador em terceira pessoa e onisciente, trazendo uma complexidade, que infelizmente não se torna polifônica (capaz de suscitar certas dúvidas existenciais no leitor ao mostrar que a visão do casal poderia não ser a única e a mais "correta", pois outras seriam apresentadas e para o narrador todas se equivaleriam, não seriam melhores ou piores, aí lembremos primordialmente de Os Irmãos Karamázov (1880) de Fiódor Dostoievski; esse termo foi cunhado pelo também russo Mikhail Bakhtin).



"O professor Gabriel Emerson estava parado à porta do seu escritório, com as mãos nos bolsos,olhando para a esposa com considerável paixão. Alto e atlético, ele tinha uma imagem arrebatadora, com seus traços rústicos e olhos cor de safira.
Ele a conhecera quando ela era uma jovem de 17 anos (dez a menos do que ele) e se apaixonara. Os dois haviam sido separados pelo tempo e pelas circunstâncias, mas, acima de tudo, pelo estilo de vida hedonista de Gabriel. Ainda assim, o Céu lhes havia sorrido. Seis anos mais tarde ela se tornara sua aluna de pós-graduação em Toronto, o que reacendeu a paixão entre eles. Casaram-se um ano e meio depois (Capítulo 1)". 



Ao observarmos temas densos como abuso e pais negligentes serem suscitados por Sylvain Reynard, percebemos rapidamente a relevância e atualidade da produção dele (pensei em levar até para a sala de aula, retirando as cenas mais eróticas e planejando as abordagens e métodos a serem adotados. Mas isso dependeria da idade e da maturidade do alunado. Talvez outras obras sejam melhores para realizar a discussão).

E como leitora mais crítica, faço algumas ressalvas, além das já realizadas sobre polifonia: ainda que interessante, essa continuação não seria necessária. O escritor realmente precisava concluir no anterior, como almejava. 
Notamos repetição de falas e diálogos já realizados nas obras anteriores, mais cheias de adrenalina e nuances que condiziam com Inferno, Purgatório e Paraíso de Dante, bases da produção e inspiração de Sylvain. 

Sabemos que o clichê, voltar ao lugar comum é refrescante e relaxante nesse momento doloroso de nossa história; ajuda a repensar atitudes e ações - a generosidade, a fé e a esperança são temáticas bases de A Redenção e de toda a trilogia - contudo acaba se tornando cansativo (o narrador à todo instante nos relembra fatos da história já mastigados). E que não neguemos, nossa vida é repetitiva e sempre esperamos que os livros fujam a essa regra e mostrem grandes aventuras e grandes reviravoltas, logo não critico inteiramente Reynard. Quanto a repetição de ideias já ditas anteriormente na série, é uma escolha de linguagem e escrita do autor, como também é característica das obras de Richelle Mead (criadora da série Academia de Vampiros e Bloodlines). Provavelmente seja uma seleção de linguagem simples para alcançar um público novato no mundo da leitura.


"– Você não pode apresentar isto – disse Gabriel, entrando no escritório na tarde do dia seguinte com uma impressão do artigo de Julia nas mãos.

Ela ergueu os olhos da tela do laptop, horrorizada.

– Por que não?

– Você está errada. – Ele largou as páginas e tirou os óculos, atirando-os em cima da mesa. – São Francisco vai buscar a alma de Guido da Montefeltro depois que ele morre. Já discutimos isso. Você concordou comigo.

Julia cruzou os braços, na defensiva.

– Mudei de ideia.

– Mas é a única interpretação que faz sentido! (Capítulo 3)".


Enxergar a vida e o cotidiano - e a rotina de estudos, rapidamente pincelada e aprofundada em outros trechos, como o acima - de casados de Julia e Gabriel é um ponto muito bem trabalhado, porque conseguimos ver os conflitos e a sua resolução de problemas. E embora clichê, é um certo acalento encontrar uma narrativa com final feliz e de luz para Gabriel, homem decaído, que consegue ascender novamente ao paraíso.

Não darei spoilers, resenhando de forma mais detalhada ou procurando decifrar mais símbolos, simbologias, como podem notar. Quero ressaltar ainda a importante motivação do escritor para procurarmos referências a livros clássicos, como realiza com Dante Alighieri, reverenciado autor de A Divina Comédia (1472). Sendo pesquisadores universitários de Dante, o casal principal pode ser uma porta de entrada para essa busca e para a sua consequente leitura. Obras contemporâneas que retornem autoras e autores antigos ao cenário atual são ótimas e se pensarmos que são capazes de encantar novas leitoras e leitores, melhor ainda


(Resenha publicada parcialmente no Skoob.com.br)



Adendo

Não são obras que tenho tido o hábito de ler, porém acho que notaram que tenho procurado diversidade, como curiosa e bibliófila que sou. E como ser humana cansada de estudos densos demais. 

Com a adaptação da série saindo, eu quis comparar e compreender os elementos que selecionaram para serem transpostos para a outra linguagem: a áudio visual. E convenhamos, a linguagem direta, objetiva dos livros é perfeita para tal fim.

Lembrando que ainda estou devendo falar sobre minhas leituras atuais. Algumas vocês ainda recordam, afinal são mais antigas e estavam empacadas, demorando a sair e as quais finalmente estou retornando a leitura (Sodoma e Gomorra de Proust e Memorial do Convento de José Saramago). Existe um post do início do ano sobre elas.

E mais, no blog Humanito ( https://souhumanito.blogspot.com ) postei uma resenha de Angústia de Graciliano Ramos, deem uma olhada, se assim quiserem. São bem-vindas e bem-vindos a visitarem.

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